3. SOBRE A TÉCNICA ENQUANTO HIPERTEXTO O COMPUTADOR PESSOAL
Desordem e Caos: Silicon Valley
Pierre Lévy, Filosofo e escritor francês. "o problema do Brasil não é a falta de computadores, mas o analfabetismo" (LÉVY, Pierre)
Na metade da década de setenta, uma pitoresca comunidade de jovens californianos à margem do sistema inventou o computador pessoal. Os membros mais ativos desse grupo tinham o projeto mais ou menos definido de instituir nova bases para a informática e, ao mesmo tempo, revolucionar a sociedade. De uma certa forma, este objetivo foi atingido. Silicon Valley, mais que um cenário, era um verdadeiro meio ativo, um caldo primitivos de instituições científicas e universitárias, indústrias eletrônicas, todos os tipos de movimentos hippies e de contestação faziam confluir idéias, paixões e objetos que iriam fazer com que o conjunto entrasse me ebulição e reagisse.
Aspecto de Stanford, universidade "berço" do Silicon Vaslley No início dos anos setenta, em poucos lugares do mundo havia tamanha abundância e variedade de componentes eletrônicos quanto no pequeno circulo radiante, medindo algumas dezenas de quilômetros, ao redor da universidade de Stanford. Lá podiam se encontrados artefatos informáticos aos milhares: grandes computadores, jogos de vídeo, circuitos, componentes, refugos de diversas origens e calibres... E estes elementos formavam outros tantos membros dispersos, experiências desordenadas de alguma cosmogonia primitiva. No território do Silicon Valley, nesta época, encontravam-se implantadas, entre outras, a NASA, Hewlett – Packard, Atari e Intel. Todas as escolas da região ofereciam cursos de eletrônica. Exércitos de engenheiros voluntários, empregados nas empresas locais, passavam seus fins de semana ajudando os jovens fanáticos por eletrônica que faziam bricolagem[1] nas famosas garagens das casas californianas.
Steve Jobs e Steve Wozniac
Vamos seguir, como exemplo, dois destes jovens, Steve Jobs e Steve Wozniac, enquanto eles realizavam sua primeira máquina, a blue box, uma espécie de auxílio à pirataria, um pequeno dispositivos digital para telefonar sem pagar. Ambos cresceram em um mundo de silício e de circuitos. Evoluíram em uma reserva ecológica, indissoluvelmente material e cognitiva, excepcionalmente favorável à bricolagem high tech. Tudo estava ao alcance de suas mãos. Poderíamos encontra-los em apartamento de São Francisco, ouvindo as explicações de um pirata telefônico em contato (gratuito) com o Vaticano. Ou então pesquisando em revistas de eletrônica, tomando notas de idéias, levantando bibliografias. Continuavam suas pesquisas na biblioteca de Stanford. Faziam compras nas lojas de sobras de componentes eletrônicos. Graças a um amigo pertencente a Berkeley, desviaram os computadores da universidade para efetuar os múltiplos cálculos para seus circuitos. Finalmente, algumas dezenas de exemplares da blue Box foram construídas e os dois Steve ganharam algum dinheiro, antes de perceber que a Máfia estava ficado interessada no assunto e abandonar o jogo. A Blue Box, desenvolvida por Steve Jobs e Steve Wozniac Milhares de jovens divertiam-se dessa forma, fabricando rádios, amplificadores de alta fidelidade e, cada vez mais, dispositivos de telecomunicação e de cálculo eletrônico. O nec plus ultra era construir seu próprio computador a partir de circuitos de segunda mão. As máquinas em questão não tinham nem teclado, nem tela, sua capacidade de memória era ínfima e, antes do lançamento da Basic 1975 por dois outros adolescentes, Bill Gates e Paul Allen, elas também linguagem de programação. Estes computadores não serviam para quase nada, todo o prazer estava em construí-los. O campus de Berkeley não ficava muito longe; a paixão pela bricolagem eletrônica se misturava então a idéias sobre o desvio da lata tecnologia em proveito da ‘contracultura’ e a slogans tais como Computers for the peaple (computadores ‘para o povo’ ou ‘ao serviço das pessoas’). Entre todos os grupo da nebulosa underground que trabalhavam para a reapropriação das tecnologias de ponta, o Homebrew Computer Club, do qual Jobs e Wozniac faziam parte, era um dos mais ativos. Fica subentendido que os seus membros mais ricos dividiam suas máquinas com os outros e que ninguém tinha segredos para ninguém. As reuniões do clube eram no auditório do acelerador linear de Satanford. Este ra o lugar para fazer com que os outros admirassem ou criticassem suas últimas realizações. Trocavam-se e vendiam-se componentes, programas, idéias de todos os tipos. Assim que eram construídos, logo após emitidos, objetos e conceitos eram retomados, transformados pelos agentes febris de um coletivo denso, e os resultados destas transformações, por sua vez, eram reinterpretados e reempregados ao longo de um ciclo, deste turbilhão de coisas, pessoas, idéias e paixões que saiu o computador pessoal. Não o objeto definido simplesmente por seu tamanho, não o pequeno computador de que os militares já dispunham há muito tempo, mas sim o complexo de circuitos eletrônicos e de utopia social que era o computador pessoal no fim dos anos setenta: a potência de cálculo arrancada do Estado, do exército, dos monstros burocráticos que são as grandes empresas e restituída, em fim, aos indivíduos.” (LÉVY, Pierre. “As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na era da informática” Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, p. 43 - 45)
Depois, talvez seja interessante escanerizar, ver o que Lévy escreve a respeito da informática nas páginas 45 à 50. “Elas tiveram uma recepção muito fraca na época entre os construtores e vendedores de computadores. A informática ainda era tida como uma arte de automatizar cálculos, e não como tecnologia intelectual.” (LÉVY, Pierre. “As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na era da informática” Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, p. 51)
“Vale a pena repetir que a maior parte dos programas atuais desempenha um papel de tecnologia intelectual: eles reorganizam, de uma forma u de outra a visão de mundo de seus usuários e modificam seus reflexos metais. As redes informáticas modificam os circuitos de comunicação e de decisão nas organizações. Na medida em que a informática avança, certas funções são eliminadas, novas habilidades aparecem, a ecologia cognitiva se transforma. O que equivale a dizer que engenheiros do conhecimento e promotores da evolução sociotécnica das organizações serão tão necessários quanto especialistas em máquinas.” (LÉVY, Pierre. “As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na era da informática” Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, p. 54)
“Muitas vezes ouvimos dizer que a técnica em si mesma não é nem boa nem má, e que tudo o que conta é o uso que fazemos dela. Ora, ao repetir isso, não nos apercebemos que um circuito impresso já é um ‘uso’; o uso de uma matéria – prima (o silicone), de diversos princípios lógicos, dos processos industriais disponíveis, etc. Um determinado computador cristaliza algumas escolhas entre os usos possíveis de seus componentes, cada um deles sendo, por sua vez, a conclusão de uma longa cadeia de decisões. Um programa resulta de uma utilização específica de um computador e de uma linguagem de programação. O programa, por sua vez, será usado de uma forma particular, e assim por diante. Esta análise pode ser repetida para todas as escalas de observação, e ao longo de todas as linhas da grande rede sociotécnica, para cima, para baixo, seguindo inúmeras conexões laterais e rizomáticas, sem que jamais achemos um objeto em estado bruto, um fato inicial ou final que já não seja um uso, uma interpretação. O uso do ‘usuário final’, ou seja, do sujeito que consideramos em determinado instante, não faz nada além de continuar uma cadeia de usos que pré-restringe o dele, condiciona-o sem contudo determina-lo completamente. Não há, portanto, a técnica de um lado e o uso de outro, mas um único hipertexto, uma imensa rede flutuante e complicada de usos, e a técnica consiste exatamente nisto.” (LÉVY, Pierre. “As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na era da informática” Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, p. 59)
[1] O termo bricolagem, que vem do francês "bricolage", é usado nas atividades em que você mesmo realiza para seu próprio uso ou consumo, evitando deste modo, o emprego de um serviço profissional. O conceito surgiu nos Estados Unidos, na década de 50, com a sugestão "do it yourself"- faça você mesmo, isso ocorreu devido ao encarecimento da mão-de-obra e se desenvolveu com a grande visão dos empresários em perceber este nicho: criando produtos fáceis de serem usados, utilizando embalagens com pouca quantidade e todos com manuais explicativos. No Brasil não foi diferente, o alto custo da mão-de-obra especializada, principalmente nos grupos de baixa renda, somado com a crise financeira, forçou o brasileiro a construir e a reformar a sua casa, ele mesmo ou na forma de mutirão; já as classes A e B, além das pequenas reformas, elas realizam pinturas especiais como pátina, decapê, texturização de paredes, confecção e manutenção de móveis, e jardinagem. Mas não paramos por aí, consertos de eletrodomésticos, instalação de antenas, artesanato e, mais recentemente, a prática de decoração, tudo isso é bricolagem. Acompanhando esta evolução, as empresas de varejo estão treinando seus profissionais para darem orientação técnica como: qual a bitola de fio mais adequada para um chuveiro, que tratamento deve receber a parede antes de ser pintada, a broca mais indicada para furar ardósia e, enfim, o seu manuseio correto. |